domingo, 14 de setembro de 2008

Ditado Tibetano

" A tristeza é senhora...
desde que o samba é samba,
é assim!
A lágrima clara
sobre a pele escura:
à noite, a chuva
que cai lá fora."

Já são muitos meses sem chuva, aqui no cerrado. Houve alívio em uma noite; há algumas semanas, alguns pingos. Mas isso não impede que a tristeza inunde hoje, a manhã de sol opaco.
E quando isso acontece, penso muito num ditado tibetano que li quando Miguel ainda estava em meu ventre:


"Se o problema tem solução,
não vale a pena se preocupar com ele.
Se não tem,
preocupar-se não ajudará em nada."


Parece banal, simples demais, mas mesmo em sua lógica tranqüila, penso que esse ditado possa traduzir hoje o que eu tento viver: a não-transformação dos eventos em tragédias ou sofrimentos maiores do que já possam ser.
E é com a mente livre de desconforto que se pode criar. Imaginar saídas, construir pontes, elaborar estratégias de enfrentamento daquilo que corrói o sentido que damos à existência.
A paz começa assim: de um sopro dentro de nós.

sábado, 6 de setembro de 2008

CRISÁLIDA


Era. Foi embora. Todo aquele jeito, ar teórico, explicação dos sentimentos.
Foi embora. Sentia tudo repleto de cores: sua alma continha o mundo todo. Azul, grená, mares do sul, anêmonas, vozes, cristais, luz de fogueira, São Sebastião, Istambul.Falava num suspiro. Fechava os olhos, sentia. Ecos, imagens, símbolos. Como uma tarde fria, cinza, confortante.
Tudo passava por si, como um espetáculo de raios em céus variados. Raios lindos, fortes, trazendo mais vida, calor.Sua pele, seus pelos... corpo largado na cama, olhos fechados e a alma vagando por todos lados. Corria num temporal, achava um rio de água quente e pulava num mergulho emocionado, como se sentisse sua pele como nunca antes. Descobria a origem da vida ao som intenso de violoncelos singelos; ao fundo, uma orquestra de grilos da madrugada.
Imaginou se tivesse uma vida diferente. E se morasse numa casinha branca, pequena, que desse para uma estrada de chão? Olharia sempre pela janela, correndo os olhos à procura de símbolos?
"Símbolos?. Estou farto de símbolos..."
É forte. Encanta. Transforma. Cura. Trabalha. Enlouquece. Parte. Lembra. Vive. Seduz.
Emerge do fundo do mar em uma concha, cria asas e ganha o céu.

Brasília, 14/11/1994.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Vôo eterno dos dragões que em mim habitam

No início foi assim...


Infância:


Imaginar sem trégua.
Observar poeira reluzindo ao brilho tênue da manhã. Brincadeiras vãs, vontade de correr de pés descalços na grama fofa dos jardins do Poder. Existiam lá, à época, cisnes brancos, no lago artificial.
Medo, falta daquele carinho rígido, porém tão necessário. Manhãs no Refúgio, em meio ao cerrado: andar a cavalo, brincar com a terra molhada, subir no pé de sirigüela, catar amora e voar no balanço-de-sonhos. Os olhos indígenas de minha mãe sempre presentes, mas muito poucas vezes felizes.




Quando fui embora:


Dúvidas, mágoas, aflições.
Movimento constante da busca. Pensamentos desordenados, folguedos insanos, tristezas, desalento e saudade da terra-natal: céu-de-cristal de Brasília.
Sertão paulista, bosque encantado, Jardim Paraná. A moto mais linda do mundo, viagens sem número, o mundo a abrir-se... O prédio ao lado da estação - morada solitária, depois do cheiro freqüente do café-Cris.
Tardes chuvosas e frias, amizades de cor tão encanto, permanentes e antes inimagináveis. Fama fulgaz, vontade de ir pra bem longe sem conseguir sair do lugar.
Até que veio a Ilha Mágica, Rio à beira-mar, trilha verde absorta na cachoeira, desembocando em mar bravo... Momentos duros, difíceis da forma e sentido, fuga constante da realidade. Senão...




Depois que voltei:

O retorno ao cerrado foi lindo, difícil e improvável, por isso tão doce! Possibilidade mais clara da retomada da força, da reinvenção do contato com aqueles que são e sempre foram os mais importantes: os laços de sangue que constróem a ponte direta à alma-coração.
Até que partiu, meu pai.
Pareceu um sonho sem volta, a desconstrução mais sentida, a falta de vida no corpo em repouso, seu rosto cansado e meu corpo em pedaços. Consolo premeditado, entoei a canção que gostava de ouvir e lembrar-se do pai - agora era minha, pra não me deixar esquecer dele fora, mas sempre dentro de mim.

Quando Miguel chegou:

Balé de emoções e sentidos diversos, adivinhei quando ele surgiu em meu ventre, de tanto que o desejo de tê-lo nos braços transbordava de meus poros morenos. Pela primeira vez, equilíbrio depois do caos consciente e provocado pela contradição de meu pensar com o de outrem.
Equilíbrio mágico, sonhado e celebrado com todos os amigos, queridos parceiros da caminhada-poesia que um dia eu quis cometer.
A espera foi densa, de uma leveza infinita, apenas incomodada pela vontade louca de vê-lo sorrir, em meus braços sedentos desse amor irreal, amor só de brisa e ondas do mar.

E hoje:

Acordo mais forte, mais viva e ainda com sede do múltiplo encontro com outros como eu: seres-humanos-destino-aprendizes, às vezes dor, às vezes em paz, às mais das vezes também sedentos de tudo de bom que essa vida tem a nos dar.
E amo.
Todas as horas passadas, as lágrimas pulverizadas nas flores da rua, os beijos, abraços e vistas da lua, tão cheia ou crescendo, iluminando as rotas possíveis de ser.